INTRODUÇÃO

 


O verbo é a parte essencial de uma oração ou sentença. Por essa
 razão, é difícil expressar um pensamento sem a participação do
verbo. É difícil, mas não impossível. O despretensioso trabalho
que apresento comprova esta minha afirmação, uma vez que
escrevi a história que ora se publica sem a presença de qualquer
 verbo, mesmo no particípio passado, funcionando como adjetivo.
Assim, qualquer pessoa pode escrever uma história sem verbo e,
para tanto, basta que engendre o assunto, estabeleça o roteiro
e mãos à obra!



SOLIDÃO


Longe, bem longe, numa distância grande, eu em minha casa, no
seio da família, com meus pais. Depois, eis - me na escola:
colegas, primeiras amizades, professores, diretor, funcionários
e tanta gente mais.
E o tempo? O tempo, esse inimigo implacável de todos nós ...
A vida, a idade sempre para frente.
Depois, eu já homem, sozinho, com Deus em minha companhia.
Mais tarde – eu, ela e Deus. Deus, agora em nossa companhia.
 Quanta ventura! Quanta felicidade!
Um dia, eu já outro homem, a família maior, maiores as responsabilidades.
Em nossa casa, um menino, um garoto forte,
bonito, robusto, toda nossa esperança. E quanta esperança!
Oh! Meu filho já com 10 anos, quanta travessura, quanta peraltice
e que incorrigível! Brigas e desavenças com colegas da escola,
com amigos dos bancos escolares; pedras nas vidraças das casas vizinhas;
futebol às escondidas; ataques às frutas dos quintais
alheios, às ocultas. Queixas, reclamações e outras coisas da
mesma natureza. Todos os dias sempre a mesma tecla. E em
resposta, em defesa de meu filho: - Ora, criancice, molecagem,
 coisas próprias da idade. A eterna desculpa.
Até que um dia... lá pelo mês de setembro, numa dessas
esplendorosas manhãs de setembro: as árvores cheias de
flores, os pássaros irrequietos e chilreadores ; o céu límpido,
 sem uma nuvem sequer; o sol, desde cedo, já tão quente; a
manhã clara, realmente bela; meu filho pronto para a escola, de
 bolsa na mão, no meio da rua, como uma estátua, distraidamente,
 sem qualquer preocupação no espírito, no seu intimo de criança,
 com sua blusa branca, alva como a neve; a calça com seus vincos
 fortes, a capricho; meu filho em seu uniforme, pronto para a
escola. De repente, a imprudência e o imprevisto. Um automóvel
 em vertiginosa carreira e logo em seguida um grito.
Somente um grito de dor e um corpo sem vida no chão; a bolsa
da escola de um lado, à distância; a roupa, em desalinho com
 grandes salpicos de sangue; em pleno êxtase contemplativo
da pródiga natureza, daquela radiosa manhã de setembro,
meu filho inerte pelas mãos de um motorista irresponsável.
Que infortúnio!
Quanta dor! Quantas lágrimas! Mal sem remédio!
 Caprichos do destino!
O tempo, o grande mestre, o místico reparador de todos os
males humanos, sempre para frente, sem interrupção.
Novamente em casa , eu, ela e Deus. Sem nosso filho, mas com
 Deus ainda em nossa companhia. Em nossos serões, na intimidade
de nosso lar, depois de um dia estafante de trabalho, eu com os
 jornais do dia, na esperança de uma notícia mais interessante,
atrás de uma distração ou de qualquer coisa diferente para o
 meu espírito; ela, às voltas com as roupas sem remendo, com
as camisas sem botão, com os arranjos da casa. Eis a nossa
vida agora. Só nós dois, sozinhos novamente, mas, sempre
com ânimo, com esperança no futuro, na expectativa de dias
melhores para a nossa alma, de um pouco de paz para
o nosso espírito.
Uma noite, entretanto, numa das noites de nosso aconchego
familiar, inesperadamente, um estalo. Tempestade tenebrosa,
aterradora, por perto. Mais alguns minutos, um estrondo mais
 forte, um clarão faiscante na sala, nada mais ante meus olhos.
 Cegueira completa. Depois dos primeiros instantes do susto
 para mim, surpreso e atônito, um quadro terrível: minha esposa,
minha companheira, na cadeira de balanço, a expressão serena
como prova de sua consciência tranqüila, os braços quietos,
em repouso, os cabelos meio revoltos, mas , sem vida,vítima
da faísca elétrica. Oh! Deus meu! Por que tanta desgraça
e só para mim? Qual o meu pecado, a minha culpa?
Piedade, Senhor!
Ao seu sepultamento, muita gente, amigos, vizinhos,
 companheiros de trabalho, parentes e, talvez, alguns curiosos.
Todos numa demonstração de apoio moral, num abraço
 fraternal para uma hora tão difícil.
Para mim, de resto – paciência e resignação.
Agora eis – me sozinho novamente. Em minha casa vazia,
 entre quatro paredes, eu em meu abandono, com quase
completa resignação, pela vontade divina.
Hoje, eu sozinho, no meu silêncio, com Deus como eterno
 companheiro, como único consolo, como único alento
para minha triste vida.
Por fim, eis – me também na expectativa de minha hora.
 Para quando?...
Hoje, em casa, nas minhas horas de devaneio, somente um
desfile, um grande desfile dos momentos felizes de minha vida.
Em meu cérebro – embates da memória...
Em minha alma – alicerces da resignação...
Em meu coração – uma dor e um vazio profundos...
Em minha vida, o fim de tudo.
Hoje, para mim, espiritualmente, só Deus em minha
companhia; materialmente, quase nada.
 Somente recordações, melancolia, tristeza, nostalgia.
Solidão!


Nelson Figueiredo
 





Nota: O autor era Professor de Português, natural de Jundiaí – SP e filho de João Baptista Figueiredo, autor do texto sem a letra A.
Coincidência ou não, muitos anos após o escrito, Nelson perdeu seu filho,
num acidente automobilístico, no mês de setembro.